terça-feira, 18 de janeiro de 2011

DISCERNIMENTO E EXPERIÊNCIA DE DEUS

1. A importância da experiência de Deus
Vivemos uma mudança de paradigmas na nossa cultura ocidental. Refiro-me à redescoberta da importância da experiência e do afeto na vida espiritual. A título de exemplo, no livro publicado na década dos sessenta por Gironella na Espanha com o título "Cem espanhóis e Deus" a imensa maioria dos entrevistados se declaram crentes, porém são muito poucos os que dizem ter tido uma experiência de Deus. Após muitos séculos de domínio solitário da teologia acadêmica passamos a revalorizar também a via da experiência e do silêncio meditativo na nossa aproximação a Deus.
Experiência é um conceito difícil. É uma modalidade de conhecimento ao qual não se chega pela atividade discursiva, refletindo como se faz com um teorema. É uma percepção simples, imediata, intuitiva. Atinge a pessoa toda: mente, sensibilidade e corpo. Atinge o núcleo do nosso eu com repercussão sobre todo o ser. Sou atingido antes da reflexão.
O pensador Henrique de Lima Vaz remove o falso lugar-comum de criar uma oposição entre experiência e pensamento, já que experiência é a face do pensamento que se volta para a presença do objeto. O que caracteriza a experiência é a penetração do objeto. Toda experiência deve encontrar sua expressão ou linguagem que, por sua vez, traduzirá uma presença. Lembrando Kant diremos que a presença sem a linguagem é opaca, a linguagem sem a presença é vazia. É importante a distinção entre experiência religiosa (do Sagrado) e experiência de Deus (do Sentido radical). O que caracteriza a experiência de Deus é que ela experimenta uma Presença onipresente, a presença do Sentido radical. Algo único, uma presença que não se desvela. O Sentido radical, como presença onipresente, é rigorosamente transcendente. No entanto, ele não é inexprimível ou inefável e eis por que podemos falar de uma experiência de Deus. A experiência cristã de Deus é a experiência da presença do Sentido radical na existência historicamente dada de Jesus, e na palavra da revelação que é totalmente condicionada por essa existência histórica na medida que dela procede e a ela se refere. É uma experiência de fé, não uma experiência religiosa. Em face do Sagrado não há fé: há fascínio e temor.
É bom lembrar, conforme diz Denis Edwards, que a experiência humana de Deus envolve um encontro entre pessoas e a interpretação desse encontro. Há sempre a percepção reflexiva e conceptual daquilo que experimentamos. É importante salientar essa dupla dimensão da experiência, porque nem sempre ela é notada.
O que tudo isto tem a ver com a nossa reflexão sobre o discernimento espiritual? O nosso encontro situa-se aqui precisamente, na experiência de um Deus que se faz sentir, se comunica conosco e nos manifesta a sua vontade.
Vez por outra nos encontramos na prática pastoral com a difícil harmonia entre Religião e Fé. Religião é um conjunto de doutrinas, normas e ritos a serviço do fundamental que é a experiência de fé. Nem sempre acontece, infelizmente. Nunca esqueço o que muitos anos atrás ouvi: o Cristianismo, e por tanto, a nossa fé, não é primordialmente uma Doutrina ou uma Moral mas é a experiência de sentir-nos amados por Deus.
Para França Miranda, no Cristianismo vale mais a experiência, a vida, do que a tematização da vida, a teoria e o conceito. A práxis cristã é mais rica do que a compreensão dela. Na Igreja, inicialmente, quem fazia a teologia, os teólogos, eram pastores e santos. À Patrística sucede a teologia escolástica que passa a ser elaborada dentro das "escolas", sem apenas contato com a experiência da vida cristã do povo. Os teólogos escolásticos não eram professores e, na sua grande maioria, não eram santos. Daí que a explicitação da experiência vivida tornou-se pobre. A teologia, afastando-se da espiritualidade, esvaziou-se e caiu no juridicismo e em receitas de salvação.
2. A experiência fundante da Fé
Jesus, após a ressurreição, continua presente através do seu Espírito conforme atesta a experiência pessoal e comunitária dos seus discípulos até hoje. Após o encontro na fé, a vida passa a ter um novo sabor e uma alegria que o mundo não pode dar. Entoamos um canto sempre novo (SI 97) cuja letra é fornecida por cada cultura e a música inspirada pelo Espírito. Esta experiência de fé é um dom precioso e sempre surpreendente: experiência de encontro e de presença. Mais ou menos intenso e profundo.
1. Experiência de presença. Não qualquer presença, fria ou distante! Em todas as coisas e em cada dom podemos encontrar um Deus presente, que trabalha, se deixa sentir e nos diz o seu amor. 2. Experiência de relação e de união mais ou menos intensa e permanente dependendo da graça e da nossa resposta em liberdade. 3. Experiência missionária de alegria que deseja ser partilhada. Consolados queremos consolar os outros e ser imagem do Deus misericordioso. Como ajudar a descobrir o Deus vivo?
Vale a pena resumir alguns pontos do artigo de J. B. Libanio sobre "Discernimento vocacional: a experiência fundante", Todo prédio precisa de alicerces, toda planta de raízes. E a nossa vocação? A vocação nasce de uma profunda experiência espiritual. Atração profunda, radical, quase irresistível para Deus. Ele enche até o fundo a nossa afetividade. Deus é tudo. Experiência de paz e alegria; dom de Deus que deve ser cultivado. Nas crises afetivas é força de superação. É a experiência termômetro de nossa caminhada. Ilumina e anima qualquer situação. As obras que empreendemos são decorrência de tal experiência, nunca sua causa! Há pessoas que procuram o sacerdócio ou a vida religiosa mais movidos por uma tipo de atividade ou trabalho concreto sem aparente presença da experiência fundante acima resumida. Num mundo secularizado, que valoriza a eficiência, é normal que as vocações surjam a partir do interesse pelo agir. Seria fatal ficar nessa motivação! O vocacionado deve ser ajudado a explicitar sua disponibilidade radical nas mãos de Deus, a uma entrega a partir de dentro, envolvendo a afetividade em profundidade. Durante o acompanhamento vocacional seria bom prestar atenção aos traços da experiência fundante, seus sinais e a relação que tem com o "fio de ouro"de cada pessoa.
3. Discernimento espiritual.
Todo cristão discerne. Esse discernimento é feito no dia a dia, de maneira intuitiva. Um discernimento reflexo está presente no Novo Testamento e na tradição da Igreja. A novidade que trouxe santo Inácio de Loyola reside no enfoque. Antes dele o enfoque era mais moral ou ascético: o que devo fazer ou evitar? A contribuição de Inácio é colocar o discernimento em relação direta com a "eleição", isto é, a vontade de Deus. Certamente a graça de Deus encontrou no santo uma capacidade notável de observação e auto-percepção num contexto histórico de crise. Hoje muito se fala em discernimento, talvez porque a sociedade vive também em crise: mudança de valores e busca de caminhos novos.
A Igreja sente necessidade de mistagogos que ajudem os fiéis a entrar no mistério de Deus. Karl Rahner fez aquela afirmação profética o cristão de amanhã ou será um místico, ou não será cristão. Isto vale para padres, religiosos e leigos! O Vaticano II diz que compete aos sacerdotes, enquanto educadores da fé, ajudar os fiéis no crescimento na maturidade capacitando-os a descobrir, nos acontecimentos de maior ou menor monta, o que exigem os fatos, qual a vontade de Deus (P.O nº6).
4. As moções do Espírito
Inácio de Loyola, durante o processo de conversão, caiu um dia na conta da existência em nós de diversos movimentos ou "moções" espirituais. Isto aconteceu analisando os seus pensamentos e sentimentos e como eles repercutiam no seu interior. Inácio descobre um Deus que se comunica e se deixa sentir tanto na orção como nos acontecimentos diários. Segundo ele, o discernimento espiritual, compreende três passos: 1º) Sentir ou tomar conhecimento das moções em nós; 2º) Examinar ou reconhecer essas moções; 3º) Passar a agir acolhendo ou rejeitando as moções discernidas.
Maurice Giuliani diz que a vida espiritual exige atenção aos impulsos do Espírito Santo e lucidez para separar o trigo do joio. Na medida em que vamos saboreando os sentimentos vindos de Deus vamos aprendendo a reconhece-los dentro de nós e nos deixarmos guiar por eles. A familiaridade com Deus se vai tornando uma atenção gozosa às suas moções. O objetivo de esta atenção às moções de Deus é conhecer a sua vontade para inteiramente cumpri-la. O sentimento espiritual para santo Inácio nunca termina em si mesmo. As principais ajudas para uma vida espiritual intensa são a oração, os momentos de reflexão e as conversas espirituais, especialmente a direção espiritual.
Passo agora a tentar resumir as orientações que santo Ináicio dá durante os Exercícios espirituais para o processo de discernimento, colocando entre parênteses os números do seu livro.
4. Processo de discernimento espiritual
5.1 Pressupostos ou preparação para uma tomada de decisão:
5.1.1 O discernimento inaciano é sempre entre "coisas boas".
5.1.2 Uma vida de oração. Até os executivos precisam parar, meditar e se rodear de assessores antes de tomar uma decisão. E nós?
5.1.3 Refletir as experiências. Só uma experiência refletida se torna significativa.
5.1.4 Contemplar a vida de Jesus. A vida no Espírito aprecia o sabor do evangelho.
5.1.5 Envolve a pessoa toda: razão, vontade, afetividade, sentimento, memória, corpo e espírito.
5.1.6 Atitude do peregrino que se exercita e colabora com a graça na busca da vontade de Deus.
5.1.7 Ter sempre claro o fim que pretendemos na vida: amar e servir a Deus em liberdade.
5.1.8 Atitude de escuta bíblica (obediência) ao Outro que me fala nos acontecimentos. Daí a necessidade do silêncio interior.
5.1.9 Ajuda de acompanhante, pessoa espiritual. Precisamos do outro. Evitar o subjetivismo.
5.1.10 Reta intenção: um olhar simples e livre (indiferença inaciana) que só aguarda um sinal da vontade de Deus.
5.2 Tempos ou modos de fazer eleição:
5.2.1 Quando Deus nos atrai imediatamente (175). Pessoa vacilante na fé ou cheia de dúvidas passa a ver claro e se entregar a Deus.
5.2.2 Quando a pessoa chega a ter bastante clareza pela experiência de consolações e desolações (176).
5.2.3 Tempo tranqüilo usando a razão iluminada pela fé. Razões a favor e contra cada alternativa. Que conselho daria a outra pessoa na minha situação?
A Confirmação da decisão alcançada pode acontecer pela consolação que se segue ou pelo rumo dos acontecimentos.
6. Regras de discernimento espiritual.
Pressuponho haver em mim três espécies de pensamentos, a saber, um que é propriamente meu e procede da minha liberdade e querer; e outros que vêm de fora, um do bom espírito e o outro do mau (32).
6.1 Regras da primeira semana (313-327): se for pessoa pouco experiente nas coisas espirituais e se é tentada grosseira e abertamente (9):
- 314 Os dois espíritos (ES/EM) agem de modo contrário entre si, daí a importância localizar em que situação a pessoa se encontra. Pessoas desligadas: ES remorde e dá "razões" para mudar de vida. EM alimenta o mau caminho "imaginando"gozos e prazeres aparentes.
- 315 Pessoas que caminham: ME traz tristeza, remorsos, obstáculos e "falsas razões'. ES traz coragem, consolações e "tira obstáculos" para continuar avançando.
- 316 Consolação espiritual: movimento interior de amor a Deus, lágrimas de amor e arrependimento; todo aumento de fé, esperança e caridade; toda alegria interior que aproxima das coisas de Deus; paz; tranqüilidade. Notar que dos sentimentos de consolação nascem pensamentos e projetos de consolação!
- 317 Desolação espiritual: obscuridade, perturbação, incitação a coisas baixas; inquietação de agitações e tentações que levam a falta de fé, esperança e amor; sentir-se preguiçoso, tíbio, triste e separado de Deus. Notar que dos sentimentos de desolação brotam pensamentos e projetos pouco confiáveis!
- 318 Em tempos de desolação nunca fazer mudanças! Ficar firmes nos propósitos anteriores à desolação.
- 319 Reagir contra a desolação: mais oração, exames, penitências...
- 320 Também na desolação o Senhor está perto e nos ensina.
- 321 Na desolação cultivar uma paciência ativa e confiante.
- 322 Principais causas da desolação:
- Tibieza, fechamento, preguiça e negligência que afastam a consolação.
- Deus nos ensina o que somos sem a sua consolação.
- Devemos ser humildes sentindo que a consolação é puro dom de Deus.
- 323 Quem está consolado pode prever e se preparar para a desolação futura.
- 324 Quem está consolado procure humilhar-se lembrando o pouco que pode quando está desolado. O desolado lembre, por sua vez, o muito que pode com a graça.
-325 Atenção a três modos do tentador proceder!
- Provoca medo em nós e avoluma as dificuldades.
- Quer que nos fechemos e assim parece que implodimos
- Ataca pelos nossos pontos mais fracos pois conhece as nossas virtudes. Às vezes o nosso ponto fraco está mascarado por trás do nosso ponto mais forte!
Santo Inácio nos ensina a agir de modo contrário ao tentador:
- abrir-nos com pessoa espiritual
- ao fazer isto o medo diminui
- e podemos até descobrir o nosso ponto fraco o que nos servirá para o futuro.
6.2 Regras da segunda semana (328-336): são mais sutis, sob aparência de bem, mais apropriadas para pessoas mais adiantadas na vida espiritual (10):
- 329 É próprio do ES: dar verdadeira alegria e gozo espiritual. Próprio de EM dar tristeza e perturbações com "razões aparentes", sutilezas e ilusões.
- 330 Só Deus pode consolar sem causa precedente. Não há dúvidas.
- 331 Com causa, Deus consola para que a pessoa cresça; mas também o EM pode consolar para que ela pare de crescer.
- 332 O EM disfarçado de anjo de luz, ataca a pessoa boa e animada, suscitando pensamentos, em princípio bons, mas que pouco a pouco levam a enganos.
- 333 Observe-se a seqüência de pensamentos. Se o princípio, meio e fim são bons, é sinal do ES. Mas se termina em coisa má ou que destrói, ou leva a coisa menos boa do anteriormente proposto, ou inquieta a pessoa, a enfraquece e conturba, tirando-lhe a paz, tranqüilidade e quietude que antes possuía, então é sinal claro do EM.
- 334 Descoberto o jeito do EM, aprendemos para o futuro!
- 335 O ES toca suavemente aos que caminham, assim como gota de água caindo numa esponja. O EM faz barulho como a gota que cai sobre uma pedra. O contrário acontece com quem vai de mal em pior. É questão de afinidade ou sintonia.
- 336 Quando há consolação sem causa aparente deve-se diferenciar os tempos de consolação, em que a vontade de Deus se manifesta, do momento seguinte em que entram em jogo os nossos hábitos, idéias e inspirações do EM.
7. Perseverança e acompanhamento espiritual
7.1 Direção espiritual
- Orientação vem de Oriente, o Sol nos orienta no tempo e no espaço
- Buscar por onde o Espírito conduz esta pessoa
- Tentar descobrir juntos sua experiência fundante
- Identificar seu fio de ouro
- A consolação espiritual é a bússola na direção espiritual
- Ajudar a descobrir seu modo de orar
- Como lidar com os bloqueios e problema psicológicos
- Periodicidade e continuidade

7.2 Oração pessoal. Grande desafio nos seminários
Exame de discernimento diário
7.3 Experimentos em que a pessoa se possa reconhecer em diferentes siuações.
7.4 Ambiente nem desfavorável demais nem protegido demais.
8. Bibliografia
- ITAICI, Revista de espiritualidade. Especialmente nº 33, SET. (1998)
- J.B. Libanio, Discernimento vocacional: a experiencia fundante. CONVERGENCIA n.20, setembro (1998) pp. 195-206.
- Denis Edwards, Experiencia humana de Deus, Loyola 1995
- Enrique C. de Lima Vaz, A experiência de Deus. No livro Experimentar Deus hoje, VOZES 1974
- Manuel Eduardo Iglesias, Um retiro com o Pai-nosso, Loyola 1989 / Subindo para Jerusalém, Loyola 1985 / Olhando por dentro, Loyola 2003.

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