1. A importância da experiência de Deus
Vivemos uma mudança de paradigmas na nossa cultura ocidental. Refiro-me à redescoberta da importância da experiência e do afeto na vida espiritual. A título de exemplo, no livro publicado na década dos sessenta por Gironella na Espanha com o título "Cem espanhóis e Deus" a imensa maioria dos entrevistados se declaram crentes, porém são muito poucos os que dizem ter tido uma experiência de Deus. Após muitos séculos de domínio solitário da teologia acadêmica passamos a revalorizar também a via da experiência e do silêncio meditativo na nossa aproximação a Deus.
Experiência é um conceito difícil. É uma modalidade de conhecimento ao qual não se chega pela atividade discursiva, refletindo como se faz com um teorema. É uma percepção simples, imediata, intuitiva. Atinge a pessoa toda: mente, sensibilidade e corpo. Atinge o núcleo do nosso eu com repercussão sobre todo o ser. Sou atingido antes da reflexão.
O pensador Henrique de Lima Vaz remove o falso lugar-comum de criar uma oposição entre experiência e pensamento, já que experiência é a face do pensamento que se volta para a presença do objeto. O que caracteriza a experiência é a penetração do objeto. Toda experiência deve encontrar sua expressão ou linguagem que, por sua vez, traduzirá uma presença. Lembrando Kant diremos que a presença sem a linguagem é opaca, a linguagem sem a presença é vazia. É importante a distinção entre experiência religiosa (do Sagrado) e experiência de Deus (do Sentido radical). O que caracteriza a experiência de Deus é que ela experimenta uma Presença onipresente, a presença do Sentido radical. Algo único, uma presença que não se desvela. O Sentido radical, como presença onipresente, é rigorosamente transcendente. No entanto, ele não é inexprimível ou inefável e eis por que podemos falar de uma experiência de Deus. A experiência cristã de Deus é a experiência da presença do Sentido radical na existência historicamente dada de Jesus, e na palavra da revelação que é totalmente condicionada por essa existência histórica na medida que dela procede e a ela se refere. É uma experiência de fé, não uma experiência religiosa. Em face do Sagrado não há fé: há fascínio e temor.
É bom lembrar, conforme diz Denis Edwards, que a experiência humana de Deus envolve um encontro entre pessoas e a interpretação desse encontro. Há sempre a percepção reflexiva e conceptual daquilo que experimentamos. É importante salientar essa dupla dimensão da experiência, porque nem sempre ela é notada.
O que tudo isto tem a ver com a nossa reflexão sobre o discernimento espiritual? O nosso encontro situa-se aqui precisamente, na experiência de um Deus que se faz sentir, se comunica conosco e nos manifesta a sua vontade.
Vez por outra nos encontramos na prática pastoral com a difícil harmonia entre Religião e Fé. Religião é um conjunto de doutrinas, normas e ritos a serviço do fundamental que é a experiência de fé. Nem sempre acontece, infelizmente. Nunca esqueço o que muitos anos atrás ouvi: o Cristianismo, e por tanto, a nossa fé, não é primordialmente uma Doutrina ou uma Moral mas é a experiência de sentir-nos amados por Deus.
Para França Miranda, no Cristianismo vale mais a experiência, a vida, do que a tematização da vida, a teoria e o conceito. A práxis cristã é mais rica do que a compreensão dela. Na Igreja, inicialmente, quem fazia a teologia, os teólogos, eram pastores e santos. À Patrística sucede a teologia escolástica que passa a ser elaborada dentro das "escolas", sem apenas contato com a experiência da vida cristã do povo. Os teólogos escolásticos não eram professores e, na sua grande maioria, não eram santos. Daí que a explicitação da experiência vivida tornou-se pobre. A teologia, afastando-se da espiritualidade, esvaziou-se e caiu no juridicismo e em receitas de salvação.
2. A experiência fundante da Fé
Jesus, após a ressurreição, continua presente através do seu Espírito conforme atesta a experiência pessoal e comunitária dos seus discípulos até hoje. Após o encontro na fé, a vida passa a ter um novo sabor e uma alegria que o mundo não pode dar. Entoamos um canto sempre novo (SI 97) cuja letra é fornecida por cada cultura e a música inspirada pelo Espírito. Esta experiência de fé é um dom precioso e sempre surpreendente: experiência de encontro e de presença. Mais ou menos intenso e profundo.
1. Experiência de presença. Não qualquer presença, fria ou distante! Em todas as coisas e em cada dom podemos encontrar um Deus presente, que trabalha, se deixa sentir e nos diz o seu amor. 2. Experiência de relação e de união mais ou menos intensa e permanente dependendo da graça e da nossa resposta em liberdade. 3. Experiência missionária de alegria que deseja ser partilhada. Consolados queremos consolar os outros e ser imagem do Deus misericordioso. Como ajudar a descobrir o Deus vivo?
Vale a pena resumir alguns pontos do artigo de J. B. Libanio sobre "Discernimento vocacional: a experiência fundante", Todo prédio precisa de alicerces, toda planta de raízes. E a nossa vocação? A vocação nasce de uma profunda experiência espiritual. Atração profunda, radical, quase irresistível para Deus. Ele enche até o fundo a nossa afetividade. Deus é tudo. Experiência de paz e alegria; dom de Deus que deve ser cultivado. Nas crises afetivas é força de superação. É a experiência termômetro de nossa caminhada. Ilumina e anima qualquer situação. As obras que empreendemos são decorrência de tal experiência, nunca sua causa! Há pessoas que procuram o sacerdócio ou a vida religiosa mais movidos por uma tipo de atividade ou trabalho concreto sem aparente presença da experiência fundante acima resumida. Num mundo secularizado, que valoriza a eficiência, é normal que as vocações surjam a partir do interesse pelo agir. Seria fatal ficar nessa motivação! O vocacionado deve ser ajudado a explicitar sua disponibilidade radical nas mãos de Deus, a uma entrega a partir de dentro, envolvendo a afetividade em profundidade. Durante o acompanhamento vocacional seria bom prestar atenção aos traços da experiência fundante, seus sinais e a relação que tem com o "fio de ouro"de cada pessoa.
3. Discernimento espiritual.
Todo cristão discerne. Esse discernimento é feito no dia a dia, de maneira intuitiva. Um discernimento reflexo está presente no Novo Testamento e na tradição da Igreja. A novidade que trouxe santo Inácio de Loyola reside no enfoque. Antes dele o enfoque era mais moral ou ascético: o que devo fazer ou evitar? A contribuição de Inácio é colocar o discernimento em relação direta com a "eleição", isto é, a vontade de Deus. Certamente a graça de Deus encontrou no santo uma capacidade notável de observação e auto-percepção num contexto histórico de crise. Hoje muito se fala em discernimento, talvez porque a sociedade vive também em crise: mudança de valores e busca de caminhos novos.
A Igreja sente necessidade de mistagogos que ajudem os fiéis a entrar no mistério de Deus. Karl Rahner fez aquela afirmação profética o cristão de amanhã ou será um místico, ou não será cristão. Isto vale para padres, religiosos e leigos! O Vaticano II diz que compete aos sacerdotes, enquanto educadores da fé, ajudar os fiéis no crescimento na maturidade capacitando-os a descobrir, nos acontecimentos de maior ou menor monta, o que exigem os fatos, qual a vontade de Deus (P.O nº6).
4. As moções do Espírito
Inácio de Loyola, durante o processo de conversão, caiu um dia na conta da existência em nós de diversos movimentos ou "moções" espirituais. Isto aconteceu analisando os seus pensamentos e sentimentos e como eles repercutiam no seu interior. Inácio descobre um Deus que se comunica e se deixa sentir tanto na orção como nos acontecimentos diários. Segundo ele, o discernimento espiritual, compreende três passos: 1º) Sentir ou tomar conhecimento das moções em nós; 2º) Examinar ou reconhecer essas moções; 3º) Passar a agir acolhendo ou rejeitando as moções discernidas.
Maurice Giuliani diz que a vida espiritual exige atenção aos impulsos do Espírito Santo e lucidez para separar o trigo do joio. Na medida em que vamos saboreando os sentimentos vindos de Deus vamos aprendendo a reconhece-los dentro de nós e nos deixarmos guiar por eles. A familiaridade com Deus se vai tornando uma atenção gozosa às suas moções. O objetivo de esta atenção às moções de Deus é conhecer a sua vontade para inteiramente cumpri-la. O sentimento espiritual para santo Inácio nunca termina em si mesmo. As principais ajudas para uma vida espiritual intensa são a oração, os momentos de reflexão e as conversas espirituais, especialmente a direção espiritual.
Passo agora a tentar resumir as orientações que santo Ináicio dá durante os Exercícios espirituais para o processo de discernimento, colocando entre parênteses os números do seu livro.
4. Processo de discernimento espiritual
5.1 Pressupostos ou preparação para uma tomada de decisão:
5.1.1 O discernimento inaciano é sempre entre "coisas boas".
5.1.2 Uma vida de oração. Até os executivos precisam parar, meditar e se rodear de assessores antes de tomar uma decisão. E nós?
5.1.3 Refletir as experiências. Só uma experiência refletida se torna significativa.
5.1.4 Contemplar a vida de Jesus. A vida no Espírito aprecia o sabor do evangelho.
5.1.5 Envolve a pessoa toda: razão, vontade, afetividade, sentimento, memória, corpo e espírito.
5.1.6 Atitude do peregrino que se exercita e colabora com a graça na busca da vontade de Deus.
5.1.7 Ter sempre claro o fim que pretendemos na vida: amar e servir a Deus em liberdade.
5.1.8 Atitude de escuta bíblica (obediência) ao Outro que me fala nos acontecimentos. Daí a necessidade do silêncio interior.
5.1.9 Ajuda de acompanhante, pessoa espiritual. Precisamos do outro. Evitar o subjetivismo.
5.1.10 Reta intenção: um olhar simples e livre (indiferença inaciana) que só aguarda um sinal da vontade de Deus.
5.2 Tempos ou modos de fazer eleição:
5.2.1 Quando Deus nos atrai imediatamente (175). Pessoa vacilante na fé ou cheia de dúvidas passa a ver claro e se entregar a Deus.
5.2.2 Quando a pessoa chega a ter bastante clareza pela experiência de consolações e desolações (176).
5.2.3 Tempo tranqüilo usando a razão iluminada pela fé. Razões a favor e contra cada alternativa. Que conselho daria a outra pessoa na minha situação?
A Confirmação da decisão alcançada pode acontecer pela consolação que se segue ou pelo rumo dos acontecimentos.
6. Regras de discernimento espiritual.
6. Regras de discernimento espiritual.
Pressuponho haver em mim três espécies de pensamentos, a saber, um que é propriamente meu e procede da minha liberdade e querer; e outros que vêm de fora, um do bom espírito e o outro do mau (32).
6.1 Regras da primeira semana (313-327): se for pessoa pouco experiente nas coisas espirituais e se é tentada grosseira e abertamente (9):
- 314 Os dois espíritos (ES/EM) agem de modo contrário entre si, daí a importância localizar em que situação a pessoa se encontra. Pessoas desligadas: ES remorde e dá "razões" para mudar de vida. EM alimenta o mau caminho "imaginando"gozos e prazeres aparentes.
- 315 Pessoas que caminham: ME traz tristeza, remorsos, obstáculos e "falsas razões'. ES traz coragem, consolações e "tira obstáculos" para continuar avançando.
- 316 Consolação espiritual: movimento interior de amor a Deus, lágrimas de amor e arrependimento; todo aumento de fé, esperança e caridade; toda alegria interior que aproxima das coisas de Deus; paz; tranqüilidade. Notar que dos sentimentos de consolação nascem pensamentos e projetos de consolação!
- 317 Desolação espiritual: obscuridade, perturbação, incitação a coisas baixas; inquietação de agitações e tentações que levam a falta de fé, esperança e amor; sentir-se preguiçoso, tíbio, triste e separado de Deus. Notar que dos sentimentos de desolação brotam pensamentos e projetos pouco confiáveis!
- 318 Em tempos de desolação nunca fazer mudanças! Ficar firmes nos propósitos anteriores à desolação.
- 319 Reagir contra a desolação: mais oração, exames, penitências...
- 320 Também na desolação o Senhor está perto e nos ensina.
- 321 Na desolação cultivar uma paciência ativa e confiante.
- 322 Principais causas da desolação:
- Tibieza, fechamento, preguiça e negligência que afastam a consolação.
- Deus nos ensina o que somos sem a sua consolação.
- Devemos ser humildes sentindo que a consolação é puro dom de Deus.
- 323 Quem está consolado pode prever e se preparar para a desolação futura.
- 324 Quem está consolado procure humilhar-se lembrando o pouco que pode quando está desolado. O desolado lembre, por sua vez, o muito que pode com a graça.
-325 Atenção a três modos do tentador proceder!
- Provoca medo em nós e avoluma as dificuldades.
- Quer que nos fechemos e assim parece que implodimos
- Ataca pelos nossos pontos mais fracos pois conhece as nossas virtudes. Às vezes o nosso ponto fraco está mascarado por trás do nosso ponto mais forte!
Santo Inácio nos ensina a agir de modo contrário ao tentador:
- abrir-nos com pessoa espiritual
- ao fazer isto o medo diminui
- e podemos até descobrir o nosso ponto fraco o que nos servirá para o futuro.
6.2 Regras da segunda semana (328-336): são mais sutis, sob aparência de bem, mais apropriadas para pessoas mais adiantadas na vida espiritual (10):
- 329 É próprio do ES: dar verdadeira alegria e gozo espiritual. Próprio de EM dar tristeza e perturbações com "razões aparentes", sutilezas e ilusões.
- 330 Só Deus pode consolar sem causa precedente. Não há dúvidas.
- 331 Com causa, Deus consola para que a pessoa cresça; mas também o EM pode consolar para que ela pare de crescer.
- 332 O EM disfarçado de anjo de luz, ataca a pessoa boa e animada, suscitando pensamentos, em princípio bons, mas que pouco a pouco levam a enganos.
- 333 Observe-se a seqüência de pensamentos. Se o princípio, meio e fim são bons, é sinal do ES. Mas se termina em coisa má ou que destrói, ou leva a coisa menos boa do anteriormente proposto, ou inquieta a pessoa, a enfraquece e conturba, tirando-lhe a paz, tranqüilidade e quietude que antes possuía, então é sinal claro do EM.
- 334 Descoberto o jeito do EM, aprendemos para o futuro!
- 335 O ES toca suavemente aos que caminham, assim como gota de água caindo numa esponja. O EM faz barulho como a gota que cai sobre uma pedra. O contrário acontece com quem vai de mal em pior. É questão de afinidade ou sintonia.
- 336 Quando há consolação sem causa aparente deve-se diferenciar os tempos de consolação, em que a vontade de Deus se manifesta, do momento seguinte em que entram em jogo os nossos hábitos, idéias e inspirações do EM.
7. Perseverança e acompanhamento espiritual
7.1 Direção espiritual
- Orientação vem de Oriente, o Sol nos orienta no tempo e no espaço
- Buscar por onde o Espírito conduz esta pessoa
- Tentar descobrir juntos sua experiência fundante
- Identificar seu fio de ouro
- A consolação espiritual é a bússola na direção espiritual
- Ajudar a descobrir seu modo de orar
- Como lidar com os bloqueios e problema psicológicos
- Periodicidade e continuidade
7.2 Oração pessoal. Grande desafio nos seminários
Exame de discernimento diário
7.3 Experimentos em que a pessoa se possa reconhecer em diferentes siuações.
7.4 Ambiente nem desfavorável demais nem protegido demais.
8. Bibliografia
- ITAICI, Revista de espiritualidade. Especialmente nº 33, SET. (1998)
- J.B. Libanio, Discernimento vocacional: a experiencia fundante. CONVERGENCIA n.20, setembro (1998) pp. 195-206.
- Denis Edwards, Experiencia humana de Deus, Loyola 1995
- Enrique C. de Lima Vaz, A experiência de Deus. No livro Experimentar Deus hoje, VOZES 1974
- Manuel Eduardo Iglesias, Um retiro com o Pai-nosso, Loyola 1989 / Subindo para Jerusalém, Loyola 1985 / Olhando por dentro, Loyola 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário